Felicidade e lágrimas em um Admirável Mundo Novo

Um Admirável Mundo Novo: A construção de uma sociedade perfeita (II)

É possível misturar felicidade e lágrimas num mundo novo? Continuando com o romance de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo[i]. Vimos num primeiro artigo a tentativa de eliminar o sofrimento emocional. Vamos descobrir agora o que Huxley nos diz com relação a uma felicidade sem esforço, que pode ser conseguida por qualquer pessoa, desfrutando de um bem-estar anônimo.

Índice de conteúdo: Felicidade e lágrimas em um Admirável Mundo Novo

Felicidade como bem-estar sem lágrimas

O Administrador, Mond, explica o que significa viver numa sociedade civilizada

Felicidade sem esforço e sem lágrimas num mundo feliz

São necessárias as lágrimas para sermos felizes no mundo?

A felicidade como incerteza e o choro do mundo

Felicidade de ser e de agir no meio da incerteza e do caos

Necessitar dos outros na felicidade e nas lágrimas de um mundo feliz

Felicidade e lágrimas num mundo feliz como desafio

Felicidade como bem-estar sem lágrimas

O máximo a que a maioria das pessoas aspira hoje talvez seja a conseguir divertir-se e, na medida do possível, curtir a vida. É uma dessas palavras “coringa”, dessas que se dizem e se escutam a toda hora: Curta a vida! Divirta-se!

O Administrador do Admirável Mundo Novo, Mustafá Mund, e o Selvagem, John, estão conversando no escritório sobre as duas cosmovisões dos seus mundos, as duas maneiras de fazer as coisas

Conversam sobre o sentido da dor, do sacrifício e do esforço que a vida exige na “Reserva” natural onde moram as pessoas como John, ou sobre a facilidade com que se pode fazer e ter tudo o que se quiser, qualquer coisa ou pessoa no Admirável Mundo Novo.

O Administrador, Mond, explica o que significa viver numa sociedade civilizada:

—Meu jovem e querido amigo —disse Mustafá Mond—, a civilização não tem nenhuma necessidade de nobreza nem de heroísmo (…) Onde houver guerras, onde houver uma dualidade de lealdades, onde houver tentações a que se deva resistir, objetos de amor pelos quais se deva combater ou que seja preciso defender, aí, evidentemente, a nobreza e o heroísmo terão algum sentido. Mas não há guerras em nossos dias. Toma-se o maior cuidado em evitar que qualquer um possa amar demasiadamente a uma outra pessoa. Não existe a possibilidade de escolher entre duas lealdades ou fidelidades, todos estão condicionados de modo que não podem fazer outra coisa senão o que devem fazer. E o que se deve fazer é, em geral, tão agradável, deixa-se margem a tão grande número de impulsos naturais, que não há verdadeiramente tentações a que se deva resistir.

Felicidade sem esforço e sem lágrimas num mundo novo

O Selvagem não entende que se possa ser feliz sem esforço algum, que se possa amar a alguém sem necessidade alguma de sacrificar-se pela pessoa amada. E lhe responde citando a Shakespeare, tendo em conta que o próprio Mond foi quem falou em nobreza e heroísmo, e dando um exemplo de como se manifestava o amor por uma jovem da sua aldeia.

—Mas as lágrimas são necessárias. Não se lembra do que disse Otelo? «Se depois de toda tempestade vêm tais calmarias, então que soprem os ventos até acordar a morte!».

Há uma história, que um dos anciãos índios costumava contar-nos, sobre a Donzela de Mátsaki. Os jovens que aspiravam a casar com ela, deviam passar uma manhã capinando o seu jardim com uma enxada. Parecia fácil, mas naquele jardim havia moscas e mosquitos encantados. A maioria dos jovens, simplesmente, não podia suportar as suas picadas. Mas aquele que conseguiu suportar a prova, casou-se com a jovem donzela.

– Encantador! Mas nos países civilizados – disse o Administrador – podem-se ter as moças que se quiser sem necessidade de capinar para elas; e não há moscas nem mosquitos que piquem. Há séculos que nos livramos completamente deles.

São necessárias as lágrimas para sermos felizes no mundo?

O Selvagem inclinou a cabeça em aquiescência, franzindo o sobrolho.

– Livraram-se deles. Sim, é bem o modo de os senhores procederem. Livrar-se de tudo o que é desagradável, em lugar de aprender a suportá-lo. Se é mais nobre para a alma sofrer os golpes de funda e as flechas da fortuna adversa, ou pegar em armas contra um oceano de desgraças e, fazendo-lhes frente, destruí-las…Mas os senhores não fazem nem uma coisa nem outra. Não sofrem e não enfrentam. Suprimem, simplesmente, as pedras e as flechas. É fácil demais…

– O que os senhores precisam – continuou o Selvagem –é de alguma coisa com lágrimas, para variar. Nada custa bastante caro aqui”.

Montamos um mundo cômodo, eficiente e tranquilo, onde nada custa muito esforço. Tudo pode ser conseguido num clique instantâneo no celular: desde a compra de um carro ou um apartamento, passando por visitas a museus e downloads de filmes. Trocamos esforço por comodidade e conforto. Trocamos educação por adestramento, virtude por valor.

De fato, e bem lá no fundo de nós próprios, queremos ser melhores, queremos ser perfeitos, mas o queremos num piscar de olhos, como resultado de alguma técnica aplicada e não como resultado de um esforço diário, vivido ao longo de muito tempo.

Suprimimos as incomodidades, as dores e os esforços, como dizia o Selvagem, em troca de uma vida agradável e confortável, onde possamos ter e curtir os nossos pequenos ou não tão pequenos vícios, sem correr nenhum risco.

A felicidade como incerteza e o choro do mundo

O ideal moderno arrancou-nos uma característica intrínseca da felicidade e deu-nos em troca uma falsa ilusão. Por um lado, passamos a acreditar que a vida é segura e que podemos ter tudo sob controle. E não é verdade.

A verdade é que a vida é bastante insegura, que não temos nada ou quase nada sob controle.

E por outro lado, a dor já não faz parte nem sequer do nosso imaginário social ou pessoal. Não somos mais capazes de entender que a dor faz parte da vida, mais ainda, que a dor é um componente intrínseco da felicidade.

Quando aprendemos a viver com a incerteza, a vida ganha em intensidade. Quando não sabemos se aquele ou aquela a quem amamos continuará ou não conosco, quando não sabemos se poderemos manter o que ganhamos, quando não sabemos se seremos ou não correspondidos, então, cada ato, cada palavra, cada momento ganha uma enorme intensidade e transcendência.

A vida ganha em densidade. Haverá dor, sem dúvida, porque tememos perder a quem amamos, mas, como dizia C. S. Lewis, é precisamente por isso que essa dor forma parte da minha felicidade.

Felicidade de ser e de agir no meio da incerteza e do caos

A felicidade é uma forma de ser e de agir no meio do caos e da incerteza e da insegurança da vida. Uma forma de ser e de agir, diz Julián Marías, que poderá ser precária e temporária, mas que não deixará de ser e produzir felicidade.

Uma felicidade que afeta a intimidade da pessoa como um todo.  E, continua Marías, precisamente porque afeta à vida como um todo e viver é, antes de nada, fazer algo, a felicidade, então, não consiste propriamente num “estado”, mas numa forma de fazer as coisas.

Essa é a estrutura existencial do ser humano. A amizade, o amor, os afetos não são coisas que possam ser compradas num supermercado nem coisas que apareçam de repente não se sabe bem de onde e num instante. Faz falta tempo, todo o tempo que for preciso para que a relação afetiva se estabeleça. E isso é enormemente inseguro e incerto.

O elemento natural e existencial do ser humano é a incerteza. E, como diz maravilhosamente Julián Marías, radica aí a grandeza do amor e da felicidade.

“O elemento de insegurança exclui a tentação da posse. Nada verdadeiramente humano pode ser possuído (…) Acredito que é precisamente nessa limitação que reside a suprema atração da felicidade (…)

Porque revela o caráter mais próprio do homem, aquele que é irredutível e não encontra equivalente na vida animal nem nas formas “coisificadas” da vida humana. Penso na condição indigente ou carente do homem (…)

más propio del hombre, aquel que es irreductible y no encuentra equivalente en la vida animal ni en las formas “cosificadas” de la vida humana.

Necessitar dos outros na Felicidade e lágrimas em um Admirável Mundo Novo

O homem não só necessita do que não tem, mas que continua necessitando daquilo que tem, e muito especificamente das pessoas. A indigência humana, a sua carência não acaba nunca, nem com a presença, nem com o gozo, nem com a posse, nem com todas as formas de realização que possam ser imaginadas.

Na medida em que as necessidades são autenticamente pessoais, são inextinguíveis, perduráveis, estão penetradas de duração ilimitada”.

No “Admirável Mundo Novo”, pelo contrário, ser feliz é sinônimo de possuir sem sacrifício. Ter tudo o que se quiser e a quem se quiser sem derramar uma única lágrima. É o choque que se estabelece entre John e Lenina. John sabe que quando se quer alguma coisa, e mais ainda, quando se ama a alguém é preciso estar disposto a sacrificar-se. Sabe que quando se ama a uma pessoa, estamos dispostos a realizar qualquer sacrifício pela pessoa que amamos. Lenina não sabe nada disso, nem sequer é capaz de imaginá-lo.

Felicidade e lágrimas num mundo feliz como desafio

Quando Lenina encontrou-se com John, não conseguiu entender nem uma única palavra daquilo que o Selvagem, que a amava apaixonadamente, lhe estava querendo dizer com toda a força da sua alma.

— Você não parece muito contente em me ver, John.

– Não pareço contente? – O Selvagem olhou-a com ar de censura, e logo caiu de joelhos diante dela e tomando-lhe a mão, beijou-a com reverência. – Não pareço contente? Ah! Se você soubesse! – murmurou e, animando-se a erguer os olhos para ela: – Admirada Lenina, píncaro mesmo de toda admiração, digna do que há de mais preciso no mundo…

Lenina sorriu com deliciosa ternura.

– Oh perfeição! – Lenina inclinava-se para ele, os lábios entreabertos – criatura tão perfeita e incomparável, criada com tudo o que há de melhor em todos os seres – Lenina aproximava-se mais e mais dele – O Selvagem pôs-se em pé de repente.

– É por isso – disse ele desviando os olhos – que eu queria primeiro realizar alguma coisa… Quero dizer, quero provar que sou digno de você. Não que eu creia que pudesse consegui-lo. Mas queria ao menos provar que não sou completamente indigno. Queria fazer alguma coisa.

– Por que é que você acha necessário…? – começou Lenina, mas deixou a frase inacabada. Havia uma nota de irritação na sua voz (…) Quando uma mulher inclina-se para a frente, aproximando-se mais e mais, com os lábios entreabertos, para encontrar-se de repente inclinada sobre o nada, porque um idiota fica de pé…bom, tem sim todos os motivos para ficar chateada, mesmo tendo meia grama de soma no corpo…

– Em meu país -gaguejava incoerentemente o Selvagem – a gente devia trazer para a noiva a pele de um leão das montanhas…Quero dizer , quando alguém queria casar. Ou de um lobo.

– Mas na Inglaterra não há leões – disse Lenina com voz quase ríspida.

– E, mesmo que houvesse – tornou o selvagem com um ressentimento súbito e desdenhoso – seriam mortos com gases tóxicos ou qualquer coisa semelhante, lançados de helicópteros, suponho. Mas eu, Lenina, não faria isso! – Endireitou os ombros, animou-se a olhá-la e deparou com o seu olhar de incompreensão. Confuso e com crescente incoerência recomeçou:

– Farei não importa o quê. Tudo o que você me ordenar. Existem jogos dolorosos, você sabe. Mas a dificuldade realça-lhes as delícias. Eis o que sinto. Quero dizer que eu varreria o chão se você quisesse.

– Mas aqui nós temos aspiradores – disse Lenina desorientada. Não é mesmo necessário.

– Não! Sem dúvida, não é necessário. Mas há coisas vis que nobremente se suportam. Quisera eu suportar alguma coisa nobremente por você. Não me compreende?

– Mas uma vez que temos aspiradores…

-Não é essa a questão!

-E Ípsilons Semialeijões para fazê-los funcionar, então por quê?

– Por quê? Mas por você, por você! Simplesmente para provar que eu…

– E que é que os aspiradores têm a ver com os leões?

– Para mostrar o quanto…

– Ou os leões com o seu prazer em me ver — – Ela estava ficando cada vez mais exasperada.

– O quanto eu a amo, Lenina – ele conseguiu dizer quase com desespero.

Como um emblema da onda interior de júbilo repentino, o sangue subiu às faces de Lenina.

– É verdade, John?

– Mas eu não tinha a intenção de dizê-lo – exclamou o selvagem num paroxismo de angústia – Não antes de… Escute, Lenina, em meu país as pessoas casam-se.

– As pessoas … o quê?! – A irritação começara a invadir a sua voz; Do que estaria ele falando agora?

– Para sempre. Fazem-se a promessa de viverem juntos para sempre.

– Que ideia horrorosa! Lenina ficou sinceramente chocada.

– Pelo amor de Ford, John, não fale besteira! Não entendo nem uma palavra do que você está dizendo. Primeiro, você me falou de aspiradores, agora de nós para sempre. Vai me deixar maluca!

Lenina, de fato, não conseguiu entendê-lo. No seu “Admirável Mundo Novo” era muito difícil entender que a dor, o sofrimento e o sacrifício fazem parte da felicidade. Felicidade e lágrimas se misturam num mundo feliz.

Rafael Ruiz

[*] Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo (Brave New World). Tradução: Vidal de Oliveira. Editora Globo, 2014. Para aprofundar neste gênero literário e a sua influência nos jovens, ver: El éxito de las nuevas distopías juveniles. Menciona a Huxley e sublinha que a sua profecia, como a de Bradbury, tem provado a sua validade: a nossa liberdade aparente é cada vez maior, mas somos cada vez mais passivos e egoístas.

Rafael Ruiz
Rafael Ruiz
Rafael Ruiz es profesor de Historia de América de la Universidad Federal de São Paulo (Brasil) y Coordinador del Laboratorio de Humanidades de la misma Universidad. Sus áreas de actuación e investigación son la Historia de la Justicia en el mundo ibérico (siglos XVII y XVIII) y Ética y Literatura en la Salud y en la vida empresarial. Ha publicado libros sobre Historia y Literatura y es autor de la novela "Concerto para Milena".
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